segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A mulher foca

Pele de Foca, pele da alma

Houve um tempo, que passou para sempre e que irá logo estar de volta, em que um dia corre atrás do outro de céus brancos, neve branca... e  todos os minúsculos pontinhos escuros ao longe são pessoas, cães ou ursos.
Nesse lugar, nada viceja gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas se acostumaram a trazer consigo seus parkas, mamleks e botas, já de propósito. Neste lugar, as palavras se congelam ao ar livre e frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios de quem fala e descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que foi dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha Annuluk, a avó, a velha feiticeira que é a própria terra.
E foi nessa terra que vivia um homem... Um homem tão solitário que, com o passar dos anos, as lagrimas haviam aberto fundos abismos no seu rosto. Ele tentava sorrir e ser feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia bem. No entanto, sentia falta de companhia. Às vezes, lá nos bancos de areia, no seu caiaque, quando uma foca se aproximava, ele se lembrava de antigas historias sobre como as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sabias, selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia nessas ocasiões uma solidão tão profunda que as lagrimas escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.
Uma noite ele caçou até escurecer, mas sem conseguir nada. Quando a lua subiu no céu e as banquisas de gelo começaram a reduzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no mar e seu olhar aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos sobre a velha rocha. Ele remou lentamente e com os remos bem fundos para se aproximar e lá no alto da rocha imponente dançava um pequeno grupo de mulheres, nuas como no primeiro dia em que se deitaram sobre o ventre da mãe. Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano a não ser na lembrança, e ele ficou olhando.
As mulheres pareciam seres feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com gotículas prateadas como as do salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e graciosos. Elas eram tão lindas que o homem ficou sentado atordoado, no barco, e a agua nele batia, levando-o cada vez mais para junto da rocha. Ele ouvia o riso magnifico das mulheres... Pelo menos pareciam rir, ou seria a água que ria as margens da rocha? O homem estava confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e,quase sem pensar, como se fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou uma das peles de foca ali jogadas. Ele se escondeu por trás de uma saliência rochosa e ocultou a pele de foca dentro de seu qutnquq,parka. Logo, uma das mulheres gritou numa voz que era a mais linda que ele já ouvira... como as baleias chamando na madrugada...ou não, talvez fosse mais parecida com os lobinhos recém –nascidos caindo aos tombos na primavera...ou então, não, era algo melhor do que isso, mas não fazia diferença porque...o que as mulheres estavam fazendo agora ? Ora, elas estavam vestindo suas peles de foca, e uma a uma as mulheres-focas deslizavam para o mar, gritando e ganindo de felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas procurava por toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar nenhum. O homem sentiu-se estimulado—pelo quê, ele não sabia. Ele saiu de trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
- Mulher...  case-se...  comigo. Sou  um...  homem ...  sozinho.
- Ah- respondeu ela. -  Eu não posso me casar, porque sou de outra natureza, pertenço aos que vivem temeqvanek, lá em baixo.
-Case-se... comigo – insistiu o homem. – Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.
A jovem mulher-foca ficou olhando muito tempo o rosto do homem com olhos que, se não fossem suas origens verdadeiras, pareciam humanos.
- Irei com você - disse ela. Relutante. – Dentro de sete verões, tomaremos a decisão.
E assim, com o tempo, tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk.  A criança era ágil e gorda. No inverno, a mãe contava a Ooruk historias de seres que viviam no fundo do mar enquanto o pai esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a mãe levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da ventilação as nuvens e todas aas sua s formas. Só que, em vez de falar das formas do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias da vaca marinha, da baleia, da foca e do salmão... pois eram essas as criaturas que ela conhecia.
No entanto, à medida que o tempo foi passando, sua pele começou a ressecar. A princípio, ela escamou e depois passou a rachar. A pele das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo da sua cabeça, a cair no chão. Ela se tornou naluaq,do branco mais pálido. Suas formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse, iam ficando mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear porque sua vista estava escurecida. E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.
- Você escondeu minha pele de foca há sete longos anos, e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que me seja devolvido aquilo de que sou feita -  gritou a mulher – foca.
- E você, mulher -  vociferou o marido. – Você  me deixará se eu lhe der a pele.
- Não sei o que eu faria. Só sei que preciso daquilo a que pertenço.
- E você me deixaria sem mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.
Com essas palavras, o marido afastou com violência a pele da porta e desapareceu noite adentro.  O menino adorava a mãe. Ele tinha medo de perdê-la e, por isso chorou até dormir... só para ser acordado pelo vento. Um vento estranho... que parecia chama-lo.
-Oooruk, Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluks até a metade. Ao ouvir seu nome chamando insistentemente, ele saiu correndo na noite estrelada.
-Oooooorukkk.
O menino correu até o penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme. Seus bigodes lhe caíam até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
-Ooooooorukkkk.
O menino foi descendo o penhasco de qualquer jeito e bem junto à base tropeçou numa pedra, não, numa trouxa, que rolou de uma fenda na rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto como milhares de açoites de gelo.
- Ooooorukkk.
O menino abriu a trouxa e a sacudiu: era a pele de foca da sua mãe. Ah, ele sentia seu perfume na pele de foca e respirava seu cheiro, a alma da mãe penetrava nele como um súbito vento de verão.
- Ah – exclamou ele com alegria e dor, e levou novamente a pele ao rosto. Mais uma vez, a alma da mãe passou pela pele.   – Ah !!!  - gritou ele de novo, porque estava sendo impregnado pelo amor infindo da mãe. E a velha foca prateada ao longe mergulhou lentamente para baixo d`água. O menino escalou o penhasco, voltou correndo para casa com a pele de foca voando atrás dele e se jogou para dentro de casa. Sua mãe comtemplou o menino e a pele e fechou os olhos, cheia de gratidão pelo fato de os dois estarem em segurança. Ela começou a vestir sua pele de foca.
- Ah, mãe, não!  - gritou o menino.  
Ela apanhou o menino, ajeitou-o debaixo do braço e saiu correndo aos trambolhões na direção do mar revolto.
- Ai, Mamãe, não me abandone! – implorava Ooruk. E logo dava para se ver que ela queria ficar com o filho, queria mesmo, mas alguma coisa a chamava, algo que era mais velho do que ele, mais velho do que ela, mais antigo que o próprio tempo.
-Ah, mamãe, não, não, não ...choramingou a criança. Ela se voltou para ele com uma expressão de profundo amor nos olhos. Segurou o rosto do menino nas mãos e soprou para dentro dos pulmões do menino seu doce alento, uma vez,  duas, três vezes. Depois, com o menino debaixo do braço como uma carga preciosa, ela mergulhou bem no fundo do mar e cada vez mais fundo. A mulher-foca e seu filho não tinham dificuldade para respirar debaixo d``agua.
Eles nadaram muito para o fundo até que entraram no abrigo subaquático das focas, onde todos os tipos de criaturas estavam jantando e cantando, dançando e conversando, e a enorme foca prateada que havia chamado Ooruk de dentro do mar da noite abraçou o menino e o chamou de neto.
­- Como você está se sentindo lá em cima, minha filha? – Perguntou a grande foca prateada. A mulher-foca afastou o olhar e respondeu.
- Magoei um ser humano... um homem que deu tudo para que eu ficasse com ele. Mas não posso voltar para ele, porque, se o fizer, estarei me transformando em prisioneira.
_ E o menino  -  perguntou a velha foca. – Meu neto? – Ele estava tão orgulhoso que sua voz tremia.
_ Ele tem de voltar, meu pai. Ele não pode ficar aqui. Ainda não chegou o seu tempo de ficar conosco.- Ela chorou.
 E juntos eles choraram. E assim passaram-se alguns dias e noites, exatamente sete, período durante o qual voltou o brilho aos cabelos e aos olhos da mulher-foca. Ela adquiriu uma bela cor escura, sua visão se recuperou, seu corpo voltou às formas arredondadas, e ela nadava com agilidade. Chegou, porém, a hora de devolver o menino à terra.
Nessa noite, o avô-foca e a bela mãe do menino nadaram com a criança entre eles. Vieram subindo, de volta ao mundo da superfície. Ali eles depositaram Ooruk delicadamente no litoral pedregoso ao luar.
- Estou sempre com você – afiançou-lhe sua mãe – Basta que você  toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu, faca, minhas esculturas de pedra de foca e lontras, e eu soprarei nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas canções .A velha foca prateada e sua filha beijaram o menino muitas vezes. Afinal, elas se afastaram, saíram nadando mar adentro e, com um último olhar para o menino, desapareceram debaixo d`agua.  E Ooruk, como ainda não era a sua hora, ficou. Com o passar do tempo, ele cresceu esse tornou um famoso tocador de tambor, cantor e inventor de histórias. Dizia-se que tudo isso decorria do fato de ele, quando menino, ter sobrevivido a ser carregado para o mar pelos enormes espíritos das focas. Agora, nas névoas cinzentas das manhãs, ele às vezes ainda pode ser visto, com seu caiaque atracado, ajoelhado numa certa rocha do mar, parecendo falar com uma certa foca fêmea que frequentemente se aproxima da orla. Embora muitos tenham tentado caçá-la, sempre fracassaram. Ela é conhecida como Tanqigcaq, a brilhante, a sagrada, e dizem que, apesar de ser foca, seus olhos são capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas.


Clarissa Pinkola Estes



Barba Azul


                                                                         O Barba-azul

Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo, já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor do índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul. Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.
 “Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim”, começaram a pensar as irmãs.Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram que não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia ser menos azul. Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.
— Vou precisar viajar por algum tempo — disse ele um dia à mulher. — Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem no alto uns arabescos, você não deve usar.
— Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto, pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo. — E assim ele partiu, e ela ficou. Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente.
— Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é esse aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada.
Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.
— Talvez essa chave não sirva para abrir nada. — Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho — errrrrrrrr. — Deram uma espiada na esquina do corredor e — que surpresa!
 — havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
— Irmã, irmã, traga sua chave — gritou uma delas. — Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
— Irmã, irmã, traga uma vela. — Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda a parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.
Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!
A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
— Oh, não! — exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.
A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
— Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina — ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após outra de sangue vermelho.Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
— Ai, o que vou fazer? — lamentou-se ela. — Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo. —E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
— E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
— Tudo correu bem, senhor.
— Como estão minhas despensas? — trovejou o marido.
— Muito bem, senhor.
— E como estão meus depósitos de dinheiro? — rosnou ele.
— Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
— Então, tudo está certo, esposa?
— É, tudo está certo.
— Bem — sussurrou ele —, então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
— Onde está a menorzinha?
— Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
— O que você fez com ela, mulher?
— Não... não me lembro.
— Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
 Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer um carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
— Sua traidora! — rosnou, jogando-a ao chão. — Você entrou naquele quarto, não entrou?

Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira decima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.

— Chegou a sua vez, minha querida — berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.

— Vai ser agora!!! — rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.

— Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.

— Está bem — rosnou ele. — Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.
A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muradas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.

— Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?

— Não vemos nada, nada na planície nua. A cada instante ela gritava para as muradas.

— Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?

— Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.

Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.

— Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? — gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.

— Estamos, estamos vendo nossos irmãos — exclamaram as irmãs. — Eles estão aqui e acabam de entrar no castelo.

O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.

— Vim apanhá-la — gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da argamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que o Barba-azul entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que saísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão, matando-o afinal e deixando para os abutres o que sobrou dele.


Clarissa Pinkola Estés.